Onze anos de transformações

Dr. Sérgio Swain Muller

Sérgio Swain Muller

Os onze anos da transformação do HC em autarquia, vinculada à SES, é oportunidade – que agradeço – de relembrar parte da história da Faculdade de Medicina e todas as lutas para mantê-la como instituição de excelência em ensino, pesquisa e assistência à saúde.

Os principais determinantes são conhecidos e as gerações mais jovens merecem saber como chegamos até aqui para melhor pensarem o futuro. Todos passamos, mas a instituição ficará para sempre. A seguir, um breve resumo.

Desde a criação da FCMBB, em 1962, e depois UNESP, em 1976, o HC jamais foi considerado com a importância que merecia. O modelo de “hospital de ensino”, para formar médicos, que atendiam “indigentes” vigorava nos anos 60. A universidade era a proprietária do hospital, que pertencia, portanto, à área de educação. Mesmo na década de 60, as principais escolas médicas de São Paulo já possuíam hospitais universitários vinculados diretamente ao governo do estado, caso do HC-FMUSP e HC-FMRP, fora do orçamento da USP no caso. As recém-criadas UNICAMP e FCMBB foram na contramão com hospitais dentro de seus orçamentos. A UNICAMP demorou anos para ter hospital próprio, funcionou precariamente em outros locais. A FCMBB surgida, paradoxalmente, a partir do prédio do obsoleto Hospital de Tuberculosos, que inicialmente abrigou toda estrutura de todos os cursos.

O HC só passou a ocupar integralmente o prédio a partir de 2011 com a coincidente inauguração do prédio da administração da FM. Desde 1963, a história do hospital é uma sequência de crises que exigiram os esforços de alunos, professores e servidores. Aqueles que viveram esses tempos testemunharam inúmeras greves, ameaças de fechamento de atividades, falta de investimento em tecnologia, insuficiência de recursos humanos. A operação andarilho é o melhor exemplo dessa época. Que prosseguiu nessa toada. Criada a UNESP, o HC serviu mais uma vez como justificativa para repartições da cota parte do ICMS que financia as universidades estaduais. A contrapartida nunca surgiu. A existência do HC sempre foi boa para pedir recursos, mas não para investir nele. As crises continuavam com espasmos de melhora quando as relações com a reitoria eram um pouco melhores. A consolidação da ideia de que a universidade jamais conseguiria manter um hospital universitário deste porte foi estabelecida ao longo do tempo.

Quem viveu esse tempo presenciou reuniões do CADE em que todos os tipos de obstáculos eram colocados contra o HC. O método UNESP de resolver problemas – montar uma comissão que produz uma tabela de pontos mágica que decide quantos médicos ou enfermeiros devem ser contratados, péssimo disfarce de decisão “democrática” de órgãos “colegiados”. Houve outras ações igualmente bizarras, como calcular quantos leitos seriam necessários para oferecer o curso de graduação, qual o custo de cada leito, para cálculo do orçamento – que nunca veio – e outras bobagens. Ou seja, o HC sempre esteve para a Universidade como uma baleia está para um aquário. É atração, mas não cabe dentro.

A criação da FAMESP em 1980 foi uma das tentativas da FM de captar e gerir recursos para o HC na ausência da universidade. Nós, alunos da época, fomos contra. Os argumentos eram risíveis. A FAMESP contribuiu e contribui muito com o hospital, mas gerou efeito adverso considerável. A reitoria se desobrigou, mais ainda, do financiamento do HC. Na medida que a Fundação passou a contratar servidores, inclusive para a FM, a reitoria lavou as mãos.

A tensão constante e a falta de perspectiva de futuro levou, pela primeira vez, durante a gestão da professora Marilza (2001 – 2005) ao debate inicial de criação da autarquia. O debate foipolarizado, tóxico e marcado por posições ideológicas exacerbadas que nunca consideraram o essencial: quem vai financiar o HC? Além disso, na época não havia proposta viável de criação da autarquia nem consenso. De qualquer forma esse debate trouxe o assunto para a pauta da FM.

Em 2005 quando assumi a vice diretoria da FMB, e diante dos problemas recorrentes do HC, resolvemos voltar ao assunto. Estava claro que dentro da universidade não chegaríamos a lugar nenhum. Na época, com a apoio do ex-prefeito João Cury, tivemos uma reunião inicial com Sidnei Beraldo, presidente do PSDB à época que prometeu ajudar. Vou poupar os raros leitores da sequência enfadonha de encontros, reuniões, idas e vindas, que ocuparam cinco longos anos, até chegarmos à 2009. Já como diretor, desde 2007, pautei o assunto na congregação da FM, após reuniões extraordinárias abertas da congregação para debates e esclarecimentos.

Em todo esse tempo, não ouvi nenhum argumento minimamente racional para a não criação da autarquia. A antologia de insensatez e falta de conexão com a realidade incluía entre outras “ideias”: movimento pelo aumento da cota parte da UNESP para financiar o HC, frente de prefeitos e deputados da região mobilizada para pressionar o governo do estado, projeto filantrópico para arrecadar fundos para o HC , diminuição do tamanho do HC (!) para ficar só como hospital de “ensino” e por aí vai . Outras pérolas incluíam a visão que o hospital estava sendo privatizado (!), que não teríamos mais autonomia, que a SES iria “mandar” no HC, etc . Autores destas sugestões instados a esclarecer a viabilidade de suas propostas e fontes estáveis de financiamento responderam de maneira muda.

A congregação aprovou com algumas abstenções dos representantes dos servidores e o processo remetido ao CO. O professor Macari, reitor à época (2005 – 2008), pautou de imediato no CO. Fizemos um trabalho junto ao Fórum de Diretores. No dia da reunião, fizemos três apresentações. Foram mostradas a situação de recursos humanos, custeio e investimentos do HC, exaustão da FAMESP como provedora e finalmente a posição da FM. Esperávamos um debate encarniçado. Não houve. Perguntei aos conselheiros do CO se aprovariam um orçamento especial de custeio, reposição de servidores, substituição de contratados pela FAMESP. Mostramos números. Nenhuma resposta. Com exceção dos servidores, que se abstiveram, todos se manifestaram favoravelmente. O prof. Macari, com o de hábito, conduziu muito bem a discussão .

A última etapa seguiu-se ao longo de 2009 e 2010. O secretário da saúde, professor Barradas, com quem mantínhamos ótimas relações era favorável, mas não queria levar o pedido ao governo como um pleito da SES, mas não se oporia se consultado pelo governador. O professor Macari também apoiava e tinha a deliberação do CO, mas queria que a FM fizesse o trabalho político. E aí tivemos que correr um risco. João Cury conseguiu agendar uma reunião com Aluísio Nunes Ferreira, então secretário da casa civil. O entendimento, acertado, é que seria melhor tratar com o dr. Aluísio que com o governador Serra. O Dr. Barradas e o Dr. Macari não pretendiam ir à reunião e na véspera tivemos que recorrer a uma, digamos, inverdade.

Telefonei para o Dr. Barradas e disse à ele que o Macari iria à reunião. Telefonei ao Dr. Macari e disse que o Dr. Barradas iria à reunião. Levamos números, relatórios e fizemos breve apresentação ao Dr. Aluísio e explicamos a proposta. Estavam presentes, eu, Pasqual, Rugolo e assessores do governo. Reunião já iniciada, para nosso alívio chegaram o prof. Macari e o prof. Barradas. O Dr. Aluísio, com simplicidade, perguntou ao prof. Barradas se a SES estava de acordo. Ele respondeu que sim. Perguntou ao prof. Macari a posição da UNESP. Macari respondeu que o CO já havia deliberado. Aluísio: “então está resolvido”. Acabou a reunião. Foi formada uma comissão para redação do PL e outros ajustes. Mais à frente acompanhei o prof. Hermann à ALESP e em votação rápida no Colégio de Líderes o PL foi aprovado para sanção do então vice-governador em exercício, Alberto Goldman.

O resto é história. A implantação da autarquia tem sido difícil, mas hoje temos interlocutores da área da saúde, uma estrutura administrativa compatível com o porte e missão do HC. Nossa nova relação com a SES permitiu a construção do Hospital Estadual, Centro de Álcool e Drogas, apoio ao novo prédio dos ambulatórios,etc . Ainda há muito háfazer. Chegamos por último na festa.

Importante destacar que nem nos piores tempos o HC, apesar de todas as dificuldades, deixou de fazer o melhor e oferecer ensino de qualidade aos seus alunos e alunas de graduação, residência, aprimoramento, etc. Na falta crônica de recursos e reconhecimento sobrou garra e comprometimento aos pioneiros, servidores e a todos alunos que por aqui passaram e que por isso mesmo mereciam mais apoio e estímulo. Mais do que isso, forjou o DNA de luta e combate da Faculdade de Medicina de Botucatu .

VIDA LONGA à FMB e ao HCFMB!

Dr. Sérgio Swain Muller é médico, docente do Departamento de Ortopedia e foi diretor da FMB . Atuou naCoordenadoria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. de 2011 a 2021. Atualmente, é Assessor do Instituto Butantan.