Por Dra. Thays Antunes
Meu trabalho como médica especialista em medicina paliativa é oferecer meu conhecimento, meu tempo e meu coração em benefício do conforto e alívio do sofrimento de pacientes que vivenciam situações de doenças graves e muitas vezes incuráveis; e esse trabalho também se estende ao cuidado com sua família e cuidadores. Compreender a morte como processo natural da vida é um dos princípios desse trabalho.
Todo profissional que exerce Cuidados Paliativos se depara no seu dia a dia com questões muito profundas da existência humana: o sentido da vida; a brevidade do tempo e a impermanência das coisas; o valor imensurável das relações humanas e da compaixão; a importância do amor (por nós mesmos, pelos outros, pela natureza); o valor das pequenas coisas; a importância de vivermos plenos e verdadeiros conosco mesmos, tendo o leme da vida nas mãos, sem ser um barco à deriva, que não sabe de onde veio, para onde vai, ou qual é seu proposito no mar do viver.
No dia a dia nos iludimos com tantas distrações do mundo que realmente nos esquecemos do que realmente importa. E para mim essa é a maior lição que a morte vem nos trazer: a de dar sentido à nossa existência, de temperar a vida e o presente com muito mais potência.
Certa vez um ocidental viajou até o Butão, que é considerado um dos países mais felizes do mundo através do FIB (Felicidade Interna Bruta) e ao conversar com um butanês, lhe perguntou porque eles eram tão felizes. A resposta foi de que eram felizes pois pensavam na morte pelo menos cinco vezes ao dia. Assim, suas escolhas, suas buscas, suas relações e suas experiências do “agora” eram muito mais conscientes e verdadeiras, o que por conseguinte traziam bem estar, felicidade e prazer.
E a morte também tem esse lugar tão importante que é o de nos colocar no presente. O passado é imutável, o futuro é uma ilusão; o presente é dádiva, o local de ação real e possível, e por isso recebe esse nome: presente!
Assim a morte nos impulsiona à vida verdadeira, traz mais leveza e proposito ao nosso existir. Morremos um pouco todos os dias, desde que abrimos os olhos nesse mundo. Mas ainda assim, não pensamos na morte. Ela, que é assunto distante (quase proibido) dos nossos pensamentos, das rodas de conversa, das escolas, dos almoços em familia. Só em falar a palavra “mor-te” podemos atrair mau agouro segundo a crença popular. Assim, mantinhamos a morte distante, até que a pandemia abruptamente bateu-nos à porta, colocando-nos no maior luto coletivo que ja vivemos. Morreu a forma que aprendemos de nos relacionar e demonstrar nossos sentimentos. Morreu nossa forma de viver socialmente, de nos movimentar no mundo; morreu parte de nossa liberdade. Choramos o luto das pessoas que perdemos e da vida que agora vamos precisar redescobrir como viver. Morreram nossas seguranças e fomos lançados a um mar de incertezas, sem mais saber se o futuro existirá, a nós mesmos ou aos que amamos. Fomos forçados a nos recolher em nossas casas, mas tambem dentro de nós mesmos, e nos deparamos com os vazios que já carregávamos, mas que antes não eram visíveis. Estávamos distraídos de nós mesmos. Distraídos da importância da vida: da nossa e da do outro. E como tudo o que morre, renasce, somos convidados, todos os dias, a renascer em nós mesmos, como indivíduos e como sociedade. Mesmo em meio a dor que vivemos atualmente, é possível experimentarmos uma liberdade interior que nos eleva?
Viktor Frankl, um neuropsiquiatra austríaco, foi vítima sobrevivente do holocausto nazista, e no livro “Em busca de sentido” relata suas experiências nos campos de concentração por onde passou. Ele descreve momentos que os refugiados podiam experimentar felicidade através das lembranças do passado; ao vislumbrar um por do sol; através da arte e do humor. Ele diz em certo trecho do livro: “A vontade de humor constitui um truque útil para a arte de viver (…) Em sentido figurado, se poderia dizer que o sofrimento do ser humano é como algo em estado gasoso. Assim como determinada quantidade de gás preenche um espaço oco sempre de modo uniforme e integral, não importando as dimensões desse espaço, o sofrimento, seja grande ou pequeno, ocupa toda a alma da pessoa humana. Dai resulta que o “tamanho” do sofrimento humano é algo bem relativo; resulta, ainda, que algo quase insignificante pode proporcionar a maior das alegrias.” E ele complementa, dizendo que “tudo pode ser tirado de uma pessoa, exceto uma coisa: a liberdade de escolher sua atitude em qualquer circunstancia da vida”.
Que os desafios pessoais e coletivos que temos vivido possam alargar nossa alma, para que dentro de nós haja mais e mais espaço para acomodar nossas dores e alegrias, nos elevar a lugares internos de lucidez, resiliência e de maior compaixão (conosco e com o outro). Que a vida valha a pena, independente do tempo que ela dure.
Dra. Thays Antunes Silva é médica e responsável pelo Serviço de Cuidados Paliativos do HCFMB.
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